sexta-feira, 26 de junho de 2009

Que matemática deve ser aprendida nas escolas hoje?


Ubiratan D’Ambrosio
Teleconferência no Programa PEC – Formação Universitária, patrocinado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 27 de julho de 2002.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece, no seu Artigo 26, alguns princípios maiores que norteiam os sistemas educacionais de todos os países. Podemos sintetizar esses princípios em três pontos:
1
Todos têm direito à educação, e a educação deve ser gratuita, ao menos nos estágios elementar e fundamental;

2
A educação elementar deve ser compulsória;


3
A educação deve ser dirigida para o desenvolvimento pleno da pessoa e para reforçar o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Deve promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações, grupos raciais e religiosos, e deve fazer avançar os esforços para se alcançar a PAZ universal e duradoura.

Uma educação de qualidade significa atingir esses três grandes objetivos. As várias disciplinas que comparecem nos programas escolares devem estar subordinadas a esses princípios.
Ogrande desafio que se apresenta para os educadores matemáticos é reconhecer como o ensino da matemática está inserido e contribuindo para essas metas maiores da educação. Essas metas respondem a uma filosofia de educação muito diferente daquela que prevalecia em meados do século XIX, quando a grande parte dos conteúdos que ainda hoje são ensinados foram incorporados aos sistemas escolares. A educação não era para todos e os grandes objetivos dos sistemas educacionais visavam a consolidação de uma elite dominante. A grande maioria da população mundial vivia sob o regime colonial ou em subordinação quase-colonial. Os programas de matemática respondiam a essa situação. O Brasil não era exceção. Uma rápida análise da história dos currículos de matemática no Brasil confirma isso.
A partir da década de 50, deu-se início a um importante processo de expansão na educação brasileira. Hoje podemos dizer que há possibilidade de termos todas as crianças na educação básica, 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, somando-se à oferta de vagas das escolas públicas e gratuitas as vagas oferecidas pelas escolas pagas. Mas não basta colocar todas as crianças na escola se insistirmos em programas e conteúdos defasados e obsoletos, em grande parte inúteis e desinteressantes. Esses conteúdos foram introduzidos nos sistemas escolares com outros objetivos, e baseados em conhecimento muito limitado, que prevaleciam no século XIX e grande parte do século XX, sobre como se dá a aprendizagem e sobre a própria natureza da matemática.
Os objetivos que prevaleciam no século XIX e em grande parte do século XX solicitavam modelos de avaliação baseados na retenção dos conteúdos ensinados. Lamentavelmente, esses modelos ainda prevalecem. Ainda se aplicam provas e testes, com resultados de aprovar ou reprovar, embora esses resultados sejam maquiados com muitos outros nomes. Um discurso de qualidade, importado dos modelos empresariais e de produção, e que pouco tem a ver com educação, é estimulado por sistemas de provas e "provôes" e vestibulares. O prejuízo desse modelo de avaliação é incalculável. Pode causar evasão, frustração de alunos, pais e professores, e tem pouco efeito no grande objetivo de se atingir uma educação de qualidade, no sentido que mencionei acima.
Uma avaliação adequada deve ser focalizada no aluno como indivíduo, analisando e chamando atenção para seus erros, com muito cuidado para evitar sua humilhação perante os colegas e o seu desencanto com a sua própria aprendizagem. A avaliação é o grande auxiliar do professor para orientar sua ação pedagógica. Permite motivar adequadamente os alunos e definir quais os conteúdos que melhor se adaptam aos interesses deles. Mas isso exige que o professor deixe de cobrar retenção de conteúdos e se liberte da idéia falsa que o programa deve ser cumprido integralmente e na ordem estabelecida.
Por exemplo, não é necessário completar o estudo de inteiros para só então começar a falar de frações. As frações mais simples despertam muito interesse nas crianças. Nas séries iniciais, deve-se falar em números ou em frações de forma concreta. Frações devem ser tratadas como um atributo quantitativo, assim como os números são atributos quantitativos de um conjunto de objetos. As operações não necessitam serem apreendidas em toda a generalidade, e deve-se fazer, desde cedo, ampla utilização de calculadoras.
Não se pode separar aritmética e geometria. Do mesmo modo que a aritmética, as noções de geometria devem ser iniciadas logo nas primeiras séries, também de forma concreta. Familiaridade com as figuras planas e com as formas espaciais deve ser preliminar a toda reflexão sobre as propriedades geométricas, tais como as medidas e as relações de dimensão em geral, como a área, o volume e o perímetro, de figuras e formas. Ao se estudar essas propriedades, a geometria espacial é mais acessível às crianças que a geometria plana. Deve-se, desde cedo, fazer utilização de instrumentos de medida, como régua, compasso, barbantes e cordas. Alguns desses instrumentos podem ser resultado de acordo em uma classe. Por exemplo, vamos fazer a medida da largura da mesa a partir de canudinhos de refresco. Mas por que não podemos fazer isso com palmos? Deve-se desenvolver o conceito de um acordo estabelecido por um grupo de indivíduos sobre que padrão será adotado para medições. Na verdade, medidas são uma ampliação dos instrumentos comunicativos. Não só a linguagem serve como comunicação, mas também a quantificação de atributos de objetos serve para comunicação. Assim nasceram os sistemas de numeração e o sistema métrico.
Desde as primeiras séries, a evolução da matemática ao longo da história da humanidade, como, por exemplo, os aspectos destacados acima – sistemas de numeração e de medida – deve ocupar uma parte das aulas de matemática. A matemática é parte integrante, de fato essencial, na evolução da humanidade. Isso deve ser destacado, dando especial atenção ao fato de diferentes culturas terem feito diferentes opções para organizarem seu sistemas de numeração e de medidas.
Não há razão para ênfase no ensino de operações com inteiros, pois as calculadoras são partes do cotidiano de toda sociedade. Não há fundamentação convincente sobre as vantagens da chamada APL [aritmética com papel e lápis]. Igualmente, as operações com frações dificilmente têm justificativa para continuarem a ser ensinadas.
Muitos perguntam: mas, então, deve-se deixar de lado o ensino de frações? Não. Conceituadas como razão de duas grandezas, elas são muito importantes. Mas o objeto fração, com o qual se realizam operações, tem nenhuma importância. Recomenda-se muita importância a razões e proporções, que infelizmente têm sido ofuscadas pelas operações com frações. E, portanto, muita importância para a regra de três, que com a utilização de uma calculadora, tem enormes possibilidades de ajudar na solução e análise de situações reais. Isso vai muito além da resolução de problemas. O que queremos é desenvolver a capacidade de lidar com situações novas, que dão origem a problemas. A formulação de problemas pelos alunos, a partir de uma situação nova, é muitíssimo mais importante que a resolução de problemas dados pelo professor. O equivalente geométrico a situações novas são as representações da realidade concreta [modelos] e da realidade imaginária [arte]. Artes e modelagem são o melhor enfoque para a iniciação á geometria. As artes dão grandes oportunidades de desenvolver a criatividade e a inventividade das crianças. Os modelos procuram entender e analisar situações da realidade concreta.
A familiaridade com os tratamentos aritmético e geométrico de representações do real concreto e do real imaginário é o principal objetivo da educação matemática nas primeiras séries do ensino fundamental.
O que tem isso a ver com os três pontos que sintetizam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em particular com a cidadania?
Cidadania tem tudo a ver com a capacidade de lidar com situações novas. Lida-se com situações conhecidas e rotineiras a partir de regras que são memorizadas e obedecidas. Mas o grande desafio está em tomar decisões sobre situações imprevistas e inesperadas, que hoje são cada vez mais freqüentes. A tomada de decisões exige criatividade e ética. A matemática é um instrumento importantíssimo para a tomada de decisões, pois apela para a criatividade. Ao mesmo tempo, a matemática fornece os instrumentos necessários para uma avaliação das conseqüências da decisão escolhida. A essência do comportamento ético resulta do conhecimento das conseqüências das decisões que tomamos.

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