terça-feira, 30 de junho de 2009

O Programa Etnomatemática - Análise no Final


por Ubiratan D’Ambrosio
Em primeiro lugar, por que falo em Programa Etnomatemática e não simplesmente Etnomatemática. A razão é de natureza metodológica e se prende ao próprio conceito de disciplina. Claro, seria um projeto interminável irmos ao exame do uso de palavras que, no curso da história das idéias, vão adquirindo identidade. O que quer dizer uma razão de natureza metodológica? E como conceituar disciplina? O uso da linguagem é um dos temas mais desafiantes das reflexões sobre a natureza humana. Vou evitar essa armadilha e adotar uma posição que muitos chamam ingênua: utilizar, com o devido cuidado mas sem cair no rigor imobilizador, termos que são de uso corrente e que se incorporaram no jargão acadêmico geral. Assim, é reconhecido que uma disciplina é caracterizada pelos parâmetros epistemológicos que lhe são próprios. E que esses parâmetros, em se tratando de disciplinas que emergiram após o deflagrar do que chamamos Ciência Moderna, identificado com a publicação dos Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de Isaac Newton, em 1687, causaram uma grande transformação nas idéias e no cotidiano da humanidade. A partir das grandes navegações, o mundo conquistado passou a ser gerido, intelectual e materialmente, por teorias e práticas subordinadas ao pensamento newtoniano. Três grandes revoluções, a Revolução Industrial (1765), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789), consolidaram o que viria a ser chamado, no final do século XX, o paradigma da modernidade. Ao contestar o paradigma vigente e falar em transdisciplinaridade, seria pelo menos contraditório propor uma nova disciplina, chamando-a Etnomatemática. O caráter dinâmico do conhecimento, expresso na idéia de ciclo e da dinâmica dos encontros, sugere que se fale no Programa Etnomatemática.
O Programa Etnomatemática teve sua origem na busca de entender o fazer e o saber matemático de culturas periféricas e marginalizadas, tais como colonizados, indígenas e classes trabalhadoras. Remete, naturalmente, à dinâmica da evolução desses fazeres e saberes, resultante da exposição a outras culturas. Mas a cultura do conquistador e do colonizador de antanho e das classes dominantes atuais também evoluiu a partir da dinâmica de encontro. Muito antes do polêmico afro-centrismo, livros elementares já reconheciam que "[A ciência helênica] teve seu nascimento na terra dos Faraós de onde os filósofos, que ali iam se instruir com os sacerdotes egípcios, trouxeram os princípios elementares." [J.Boyer: Histoire des Mathématiques, Gauthier-Villars, Paris, 1900; p.9]. O encontro cultural assim reconhecido na Antiguidade, não estava subordinado a prioridades coloniais como aquelas que se estabeleceram posteriormente.
O Programa Etnomatemática não se esgota no entender o conhecimento [saber e fazer] matemático das culturas periféricas e marginalizadas. Também o conhecimento das culturas dominantes deve ser entendido de forma muito mais geral que a simples descrição e assimilação de teorias e práticas consagradas pelo ambiente acadêmico. Deve-se entender o conhecimento, seja das culturas periféricas e marginalizadas, seja das dominantes, na complexidade do ciclo da sua geração, organização intelectual, organização social e difusão. Deve-se também levar em forte consideração a dinâmica cultural dos encontros [de indivíduos e de grupos] e a dinâmica de adaptação e reformulação que acompanha o ciclo da geração, organização intelectual, organização social e difusão do conhecimento. O Programa Etnomatemática tem, portanto, ligações com a Etnografia e a Antropologia, com a Cognição e a Lingüística, com a História e a Sociologia, com a Filosofia e a Religião, e com a Educação e a Política. Mas vê todas essas ligações com a visão da transdisciplinaridade. O fato não se subordina às classificações disciplinares.
Por que o nome Etnomatemática? Essa é uma questão muito controversa e há inúmeras maneiras de justificar. Uma primeira objeção, muito comum, é dizer "Mas só há uma matemática. Não importa onde, 2 mais 2 são 4." Claro, mas aso disciplinas tem a ver com representações da realidade e com a organização dessas representações em corpos de conhecimento. Reconheço então a grande influência que tive da leitura do clássico de Oswald Spengler, The Decline of the West [A Decadência do Ocidente], escrito nos anos 20, em que ele diz: "não há uma escultura, uma pintura, uma matemática, uma física, mas muitas, cada uma diferente das outras na sua mais profunda essência, cada qual limitada em duração e auto-suficiente." Desde meados da década de 70 tenho utilizado, em grande parte apoiando-me em Spengler, a palavra Etnomatemática, inicialmente por analogia com Etnopsiquiatria, Etnomusicologia, Etnobotânica e outras disciplinas que focalizam as raízes étnicas, para destacar essa multiplicidade. Nunca havia visto a palavra Etnomatemática. Recentemente, soube que, em meados de 70, um autor utilizou essa palavra num artigo de pouca circulação.
Por que não usar simplesmente Etnociência, já que Matemática é uma disciplina tipicamente ocidental e só começa a adquirir uma identidade própria a partir do Renascimento? De fato, a Matemática sempre esteve integrada com as Ciências Naturais, com a Filosofia e com a Religião. No seu excelente livro The Social Life of Numbers. A Quechua Ontology of Numbers and Philosophy of Arithmetic [A vida social dos números. Uma ontologia dos números e filosofia da atitmética dos quéchua] , University of Texas Press, Austin, 1997, o antropólogo Gary Urton fala em Etnofilosofia. Talvez pelo fato de ser a Matemática a disciplina que mais recusa alternativas, o uso de Etnomatemática pareceu-me o mais oportuno, embora eu tenho escrito vários trabalhos em que utilizo a palavra Etnociência. A problemática e o enfoque metodológico são os mesmos.
A partir da minha conferência magna de abertura do V Congresso Internacional de Educação Matemática em 1984, em Adelaide, Austrália, a palavra Etnomatemática foi aceita em todo o mundo. As repetidas utilizações que eu fiz dessa palavra levaram-me a procurar uma justificativa para o nome. Fui tentado a dar uma justificativa pseudo-etimológica, que passei, inclusive, a adotar como uma definição: etno [ambiente natural e cultural] + matema [conhecer, explicar, entender, lidar com o ambiente] + tica [artes , técnicas, modos e maneiras de]. Assim, defino Etnomatemática como o corpo de artes, técnicas, modos de conhecer, explicar, entender, lidar com os distintos ambientes naturais e sociais, estabelecido por uma cultura. Dentre as várias artes e técnicas desenvolvidas pelas distintas culturas, incluem-se maneiras de comparar, classificar, ordenar, medir, contar, inferir, e muitas outras que ainda não reconhecemos.
Embora uma importante vertente da Etnomatemática seja buscar identificar manifestações matemáticas nas culturas periféricas, tomando como referência a matemática ocidental, o Programa Etnomatemática tem como referências categorias próprias de cada cultura, reconhecendo que é comum a toda espécie humana a satisfação de pulsões de sobreviver, que se dá agora e aqui, e de transcender o momento temporal e espacial da sobrevivência.
Sobrevivência e transcendência são absolutamente integradas, numa relação como que simbiótica. A satisfação do pulsão integrado de sobrevivência e transcendência leva a desenvolver modos, maneiras, estilos de explicar, de entender e aprender, e de lidar com a realidade perceptível. O pensamento abstrato, próprio de cada indivíduo, é uma elaboração de representações da realidade e é compartilhado graças à comunicação, dando origem ao que chamamos cultura. Os instrumentos [materiais e intelectuais] essenciais para essa elaboração incluem, dentre outros, os sistemas de comparação, classificação, ordenação, medição, contagem e inferência. O Programa Etnomatemática tem como objetivo entender o ciclo do conhecimento em distintos ambientes, procurando explicações sobre como tais sistemas foram se estruturando ao longo da história de um indivíduo, de uma comunidade, de uma sociedade, de um povo.

O Programa Etnomatemática permite um enfoque mais abrangente dos estudos de história e filosofia. Neste momento de questionamento da atual ordem internacional, é importante adotar novas propostas historiográficas e epistemológicas que permitam lidar com a difícil tarefa de recuperar, na história das ciências e da tecnologia, o equilíbrio que deve resultar da mescla de tradições. A busca de alternativas historiográficas que conduzem a uma história que não venha embebida de um determinismo eurocêntrico, favorecendo a manutenção do status quo e desencorajando a superação da desvantagem atual, é essencial. No caso brasileiro, nossa cultura repousa sobre o tripé das tradições indígenas, européias e africanas. O reconhecimento das contribuições dessas três tradições na elaboração do pensamento matemático da população brasileira é uma importante vertente do Programa Etnomatemática.
O Programa Etnomatemática tem importantes implicações pedagógicas. Educação é, em geral, um exercício de criatividade. Muito mais que transmitir ao aprendente teorias e conceitos feitos, para que ele as memorize e repita quando solicitado em exames e testes, a educação deve fornecer ao aprendente os instrumentos comunicativos, analíticos e tecnológicos necessários para sua sobrevivência e transcendência. Esses instrumentos só farão sentido se referidos à cultura do aprendente ou explicitados como tendo sido adquiridos de outra cultura e inseridos num discurso crítico. O Programa Etnomatemática destaca a dinâmica e a crítica dessa aquisição.
Muito se tem refletido, pesquisado e escrito sobre como a nova postura proposta pelo Programa Etnomatemática pode ser incorporada nos sistemas escolares. O campo de pesquisa denominado Etnomatemática é internacionalmente reconhecido e a literatura é vasta. Esta página é uma importante e necessária contribuição para que a Etnomatemática seja difundida e desenvolvida no Brasil e se incorpore às práticas escolares.


Análise do Texto
Edney de Menezes

Realmente hoje se fala de etnomatemática como um salvação para o ensino da matemática, pois para ensinarmos matemática para o o educando de maneira natural não devemos disconsiderar o que ele traz de casa, pois cada grupo social tem uma maneira diferente de usar a matemática. Esse é o grande trunfo para o educador do futuro, pois além de usar matemática de forma social, pensando também numa interdisciplinaridade da matemática com as outras. Percebo que a introdução da etnomatemática na classe docente, está ocasionando um revolução no ensino.

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